sexta-feira, 10 de julho de 2009

Calvino 500 anos


Celebrar Calvino: Calvinolatria?

No momento em que tantas e tão variadas celebrações pelo 500º aniversário de João Calvino estão em andamento, multiplicam-se mais uma vez as interpretações sobre sua vida e obra. Como sempre, elas vão desde as tradicionais, que desejam segui-lo, vendo-o como fonte de autoridade dogmática para estes tempos de relativismo e tédio, até as visões que o retomam como paladino da revolução e do ecumenismo, em meio a um tempo também desprovido de esperanças e utopias.

Certamente seu legado teológico, espiritual e cultural permite estas e outras leituras intermediárias, que novamente mostram-no como um pensador não apenas religioso que, como poucos em sua época, vislumbrou as possibilidades de se continuar sendo cristão em uma época hoje conhecida como “moderna.” Como atualmente nos encontramos, ao que parece, em um beco com pouca margem para uma saída, as leituras e releituras produzem um rico intercâmbio de perspectivas para a tarefa de re-alocar o papel dos reformadores do século XVI.

Assim, desde a época em que Stefan Zweig lançou seu dardo demolidor, que é o livro Castellio contra Calvino - Consciência contra violência (Barcelona, Acantilado, 2001), tornou-se moda atacar os aspectos mais negativos do reformador francês. O teólogo Eberhard Busch observou que, ao escrever sobre Calvino, Zweig teve em mente, o tempo todo, a figura autoritária de Hitler e que isto também o estimulou a interpretar o conflito com Sebastião Castelio através de uma chave mais contemporânea, ao invés de apegar-se aos fatos históricos.

Zweig encontrou eco em uma boa quantidade de leitores e estudiosos que aceitaram a idéia de que, realmente, um monstro teocrático se apoderou da cidade de Genebra e eliminou qualquer sombra de liberdade. Semelhante despropósito, além de não fazer justiça aos fatos ou a qualquer esforço por alcançar alguma objetividade, não contribui para um diálogo adequado com uma figura com as dimensões de Calvino.

Em 1983, por ocasião das celebrações dos 500 anos de Martinho Lutero, a conjuntura histórica existente fez com que as festividades ocorressem no local geográfico que hoje é a República Democrática Alemã (RDA), pela simples razão de que nesse território estava localizada a cidade de Eisenach, berço do reformador. Naquela ocasião, o governo democrático da RDA utilizou o aniversário de Lutero para atribuir-lhe uma visão ligada a seus interesses ideológicos. Assim, Lutero encarnou, conforme esta leitura, não apenas o espírito libertário germânico, mas também foi considerado uma espécie de precursor das mudanças sociais vividas nos anos do chamado “socialismo real.”

Guardadas as devidas proporções, agora são debatidos novamente os alcances da “gesta calviniana” e as celebrações não escapam ao intenso fogo cruzado de apropriações e rejeições àquilo que Calvino representa. Embora quase ninguém mais o veja como “único pai” do capitalismo, especialmente quando este sistema mostra suas enormes debilidades, mesmo assim muitas análises resgatam seu lugar no panteão dos pioneiros da democracia moderna. Por esse motivo, são tão importantes as aproximações comedidas e dispostas a dialogar com posturas que lhe são contrapostas.

Na América Latina em geral, a herança protestante é responsável por um passado missionário que pouco esforço fez para aproximar as novas comunidades dos seus fundadores. Daí porque hoje, inclusive, muitos pastores presbiterianos rejeitam abertamente a figura de Calvino como uma influência que deveria definir sua identidade e seu trabalho eclesiástico. Esta contradição de termos, mais comum do que parece, é experimentada também nas comunidades, pois estas visualizam Calvino como alguém bastante estranho e distante.

Na verdade, seu conhecimento e relação com as reformas religiosas do século XVI são tão reduzidos que os nomes e o impacto daqueles movimentos nas novas gerações de crentes só ocorre através dos estudos “seculares” de história universal. A “marca” européia de Calvino é outra barreira que impede, em certas ocasiões, que se volte os olhos para além das igrejas mães que impuseram outros modelos de fé e ação para as novas igrejas. Descobrir-se “calvinista”, como escreveu Bernard Cottret, inclusive para os pastores franceses, é toda uma odisséia surpreendente.

A revista reformada The Banner questiona, com grande pertinência, a necessidade de se situar em um marco equilibrado a celebração dos 500 anos de Calvino. No editorial, assim escreve Bob de Moor: “A última pessoa no mundo a querer que ressaltemos seu 500º aniversário é o próprio João Calvino... Não, não estamos glorificando o homem. Ele detestaria que fizéssemos isso! Calvino nos ensinou a glorificar somente a Deus. No entanto, somos gratos a Deus por causa de Calvino, que atuou incansavelmente para enraizar firmemente os crentes na abençoada Palavra de Deus. A Reforma que Calvino ajudou a fazer não contribuiu com nada de novo para a fé – nenhuma nova doutrina ou ensinamento. Sua intenção foi sempre voltar à autêntica fé cristã e obediência à Escritura, nosso único guia fiel para a fé e a vida”.

É preciso, portanto, evitar de maneira efetiva os riscos da “calvinolatria” por meio de uma série de corretivos que permitam apreciar a obra do reformador francês em sua justa dimensão, com os claro-escuros gigantescos que teve, pois, da mesma forma como são destacadas suas abordagens teológicas e espirituais, é preciso reconhecer também suas falhas e debilidades.

Aos que apenas se lembram da morte ofensiva e ignominiosa de Miguel de Serveto em Genebra, é preciso responder afirmativamente: Sim, Calvino se equivocou redondamente e fez incursões pelos perigosos limites do autoritarismo e da intolerância. A partir daí, como escreve Joseph Small, da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, a comemoração deve contextualizar-se ao máximo para responder às exigentes necessidades atuais: “Não precisamos colocar Calvino em um pedestal para apreciar o modo como sua perspectiva da fé e da vida cristã formaram e continuarão formando as igrejas reformadas em todo o mundo”.

Na conclusão de sua admirável biografia de Calvino, Teodoro Beza, seu sucessor, escreveu: “Agradou a Deus que Calvino continue a nos falar através de seus escritos tão eruditos e cheios de piedade. Depende das futuras gerações o continuar a ouvi-lo”. As gerações futuras continuarão escutando-o, não passivamente, mas com o compromisso vivo de que às vezes aprende com ele e às vezes discute com ele, assim como descobre que as perguntas e respostas contemporâneas são revistas no contato com suas perguntas e respostas.

Leopoldo Cervantes-Ortiz é pastor e teólogo da Igreja Presbiteriana do México
(Tradução de El Protestante Digital, março 2009, pelo Rev. Eduardo Galasso Faria, professor do Seminário Teológico de São Paulo e relator da Comissão Especial do V Centenário de Calvino)

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